Era
uma tarde quente. Não. Não quente como a usual temperatura daqui, quente de
verdade! Andar nas ruas era o mesmo que estar em uma sauna, uma vez que até a
costumeira brisa da tarde fora convertida em um causticante bafo de um sol mal
humorado que se deixava erguer majestosamente no céu.
Como
sempre ocorre em dias como este, as vizinhas, postadas às sombras das arvores
ou sob marquises e “puxadas” nas frentes de suas casas tentando, em vão, se
refrescar, comentam:
-
Eita, que calorão hein?
-
É... hoje “tá” quente mesmo!
Na
escolinha, como podia ser diferente, ocorria a mesma situação. Os ventiladores
(os poucos que funcionavam) não eram suficientes contra o calor, apenas fazendo
com que o mesmo circulasse pela sala, deixando os professores e professoras
inquietos, os meninos e meninas com os rostinhos corados e as frontes cobertas
por gotículas que se iam formando e escorrendo até ter seu percurso
interrompido pelas “costas” de uma mãozinha ágil e rápida.
-
Tio, “tô” com fome!
A
voz miúda e esganiçada delatava seu emissor: Murilo. Um garoto pequeno,
queimado de sol, olhos suplicantes e grandes encimados por finas sobrancelhas,
nariz afilado e cabelos revoltosos. Única cabeça que não se debruçava sobre a
tarefa.
- Na
hora do recreio tu lanchas, tem merenda hoje. Agora, faça tua tarefa.
-
“Tá” bom, tio.
As
risadinhas, conversas animadas se faziam ouvir enquanto o professor passava de
mesa em mesa:
-
Não falta uma letra aqui?
-
Nossa que letras grandes Isabel! Não poderiam ser menores?
- Mas
aí eu ia ter que escrever muito, tio.
-
Por quê, Isabel?
-
Porque letra pequena cabe muitas na folha.
-
Isabel, Isabel...
O
professor ria da esperteza da garota.
-
Tio?
-
Fala, Murilo.
-
Posso ir mijar?
-
Como, Murilo?
-
Posso ir ao banheiro? Disse em tom quase formal.
-
Vai lá.
-
Todos terminaram? Guardem seus materiais e façam filas, meninas aqui e meninos
ali.
Os
alunos saem como de costume, meninas na frente e meninos atrás. O professor os
acompanha e fica por perto observando-os durante o lanche. De repente Murilinho
chega com seu prato e senta-se na frente do professor. Ao ver o menino apenas
engolindo sem mastigar, numa velocidade que não faria bem a digestão, o
professor fala:
- O
que é isto menino, tá morrendo de fome?
Murilinho,
com os olhinhos chispando de contentamento, vai retrucar:
-
Não fale de boca cheia! Come devagar, Murilo, mastigue os alimentos, não
almoçou em casa?
A
boca de Murilo está vazia e ele pode responder:
-
Não tio, nem café tomei hoje. Mamãe não fez.
- Por
quê? Ela está doente?
-
Não. É porque á em casa não tem nada pra comer, tio.
O
professor checa o visor do celular, 3:43 da tarde. Olha para Murilo que, agora,
esboça um sorriso de orelha a orelha.
-
Vai ver se tem mais merenda vai, Murilo.
O
menino sai aos pinotes, e o professor leva as mãos aos olhos. Lembrando da aula
que ministrava á minutos antes e que fora interrompida:
-
Tio, tô com fome!