Eu o via sempre após meia-noite. Chegava do trabalho, subia ao 30º andar e, cá estava eu no meu apartamento e ele no dele no 29º andar do prédio em frente.
Sempre ali, ao piano, com um manto de colorido invislumbre – se é que tinha um – cobrindo o seu corpo por inteiro dos meus curiosos olhares que, exceto pelo pescoço, rosto e braços, me parecia ser muito branco em alto contraste com os cabelos negros e a boca exageradamente rubra que eu delineava à distância.
Parecia não possuir nem um Chaver e muito menos uma vida dada à sociedade.
Ao chegar do trabalho em pouco mais de cinco meses era uma satisfação observá-lo. Imóvel, rijo, teso, apenas as mãos se moviam habilmente sobre o teclado e hora ou outra a testa para afastar um cacho de cabelos que, teimosamente, insistia em afagar-lhe a pálida face.
Eu sentava-me à janela, seguro de mim. Ele sequer notava minha permanência há alguns metros de distância e outros mais do nível do seu aconchego doméstico.
Intocável!
Súbito, ele levanta, se acomoda ao manto e caminha em direção à janela.
Demonstra-se ainda enlevado pela música que tocara há pouco. Olha a Lua. Como que a desejar-lhe Boa Noite, ele faz uma reverência graciosa e a cuja religião pertencia eu não saberia dizer. Retira-se a passos surdos. Sequer percebera a minha “presença”!
Eu também erguia o olhar para o Astro Noturno, compartilhando da despedida. Lá, sempre presente, Ela pairava, o “rosto” inclinado contra mim.
Ela podia sentir a dor do meu peito?
Ela sabia.
Eu não!
Eu olhava para um poço profundo de dúvidas e interrogações. Pude ter essa certeza “de perto”.
Um dia, nos cruzamos deixando os edifícios. Dia chuvoso e ele caia graciosamente no ambiente que se fazia por tal. Seguro de si, dirigiu-se até seu carro, abriu a porta e entrou como que houvera planejado aquele simples movimento passo a passo. É. Tudo planejado em sua vida. Eu aqui, morto-vivo.
Eu dirigi meus olhos em sua direção atentamente. Ele nem sequer me notou, do alto do seu Palliare de linho verde-creme. Cheguei a fitar-lhe os olhos. Os dele atravessaram os meus friamente.
“- Esqueça-o!” Disse-me a Ishah Razão.
Eu o esqueci.
Passei a sair ao trabalho deixando as cortinas que davam para o “seu” edifício fechadas.
Mas, como se podia esperar, não fui um Gever HaChaim!
Certa noite. Meia-noite. As abri novamente.
“Ouvi o chamado da música!” Eu as ouvia provocando-me sensações tenebrosas e desconforto d’alma, roubavam-me o sono.
Minha paz, antes “pendente”, agora se ia de vez. Mais uma vez!
Cada dedilhar nas teclas, cada vibrar das cordas. Parecia acontecer dentro de mim.
E doía.
Senti um frio correr-me às costas. Paralisei-me. Estático. Ele tocava e... ele me observava e eu sequer havia me dado conta disto. Inclinando o rosto. Na minha direção. Ele me via.
Levanta-se, vem até a janela, estende sua mão em minha direção.
Que pretende ele?
Alterando tudo em que cria até então... Postado a cem ou mais metros de distância, sinto uma brisa me acariciar o rosto.
“- Sameach!”
Um aroma “invade” o ar. Seria este o seu perfume? Sim. Era este!
Ele volta à banqueta. Aponta para o teclado, leva a mão sobre o peito – por dentro do manto – em seguida, juntando uma à outra as aponta em minha direção.
O gesto era sublime de mais. Incompreensível de mais. E, ainda assim, penso: dar-me seu amor? Sua alma? Seu coração?!?
- Yahfeifeh!
...
Acordo com o som estridente do despertador.
*Etrusco rúnico. Apesar de ser muito difícil a interpretação das runas pelos etruscos, baseavam-se em princípios de vida, onde tudo que era "manifesto" seguia a um princípio divino: aumento da prole. No dialeto: Anarhnu, seria um ente mitológico que anseia por se proliferar mas não se entrega à "busca" pelo outro, mas, aguarda pacientemente que seja encontrado.
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