A manhã chuvosa contrastava com a noite de brilhante luar que se permitira admirar. Ao sair para o trabalho, segundo o seu costume, fez a sua oração, leu um trecho do Livro Sagrado e, sem despedir-se da esposa e dos filhos, saiu de casa. Nem observou a chuva que caía incessantemente, tal como também não perdia seu tempo observando os luares da noite.
Ao chegar à rua, cumprimentava apenas aqueles a que julgava fazer por bem. “Diz-me com quem tu andas que te direi quem és!” Sempre lhe vinha à mente a passagem bíblica. E ele esquivava-se de todo e qualquer contato com pessoas que não tivesse a mesma “liberdade” que havia conquistado.
No trabalho, pelo importante cargo que ocupava na repartição, todos o tratavam com respeitoso distanciamento, convictos de sua seriedade e taciturnidade. Dirigiam-lhe apenas a indispensável palavra, e o tinham em muito alta conta como profissional que era. Chegava todos os dias e voltava para sua casa sempre com apenas duas saudações: bom dia e boa tarde.
Aos domingos, seu dia de descanso, fazia-se acercar da família logo cedo, ao prepararem-se para ir ao culto matinal dominical. Os filhos tremiam em pensar que o pai, muito honrado, não aprovaria a roupa ou mesmo a forma como se portavam nesse dia. Para ele, o mais importante de todos.
Ao chegarem à congregação, cada qual tomava o seu assento depois de se ajoelharem e proferir algumas palavras que lhes sabia mecanicamente. Durante toda a reunião, não havia qual se encorajasse a dirigir uma palavra sequer, que estivesse fora do contexto da lição que era estudada.
Retornando para casa, cumprimentava mui amavelmente os “irmãos” que faziam o mesmo percurso e incitava os filhos à esta mesma atitude.
Durante o almoço, que não iniciava sem a presença deste, todos, de mãos dadas, elevavam uma prece à Providência pelo alimento que lhes era disposto sobre a mesa. Em realidade, eram estas as únicas palavras que eram ditas em tais ajuntamentos familiares.
No decorrer da tarde, ao se retirar para seu aposento. Onde cumpriria a cesta, podia-se ouvir a mãe em recomendação aos filhos para que guardassem silêncio em função de seu pai estar descansando.
Era mui prestimoso em tudo o que fazia, pensando fazer para agradar ao Soberano Ser.
Mas, em determinada noite, teve um sonho. Sonhou que estava em sua casa, mas não se via como a si. Tinha uma outra aparência. Era amável, os filhos realmente o amavam, não tinham por ele temor. O respeitavam em obediência e afeto.
Observou que aqueles pequeninos seres, precisavam de mais que palavras de repreensões que por ele eram jogadas de encontro à paredes da pequena casa por qualquer motivo.
Viu que sua esposa tinha uma aparência cansada, triste e abatida. Pensou que seu casamento era tal qual um conto mal contado. Onde todos os que estavam à margem do mesmo, o percebiam com muito apreço, mas, que os nele embutidos sentiam-se mal. Era um mandamento atrás do outro.
Sua casa era a imagem de uma solidão entre a multidão.
Conduzido ao seu trabalho. Observou que ninguém lhe tinha o respeito apresentado. Era tido como carrasco e que não havia um só que partilhasse a forma como demonstrava viver a sua fé. Não obstante, notou que era motivo de comentários fortuitos, que desmereciam Aquele a quem ele sempre pensou viver.
Na comunidade era tido como um carrasco sobremaneira dispensável.
Acordou no meio da noite e olhou a esposa que ressonava profundamente ao seu lado. Eram vinte anos de convivência e ele nunca lhe perguntava como havia sido o seu dia. Como passara as horas em que estivera longe do lar. Quais os problemas, corriqueiros que fossem, enfrentados por ela no dia-a-dia. Lembrou que nunca indagava aos seus subordinados as suas idéias de como melhorar o ambiente de trabalho e que somente lhe impunha regras e mais regras, sem a preocupação de estar fazendo o bem para eles e, por conseguinte para a própria repartição.
Levantou-se e foi até o quarto dos filhos. Não havia aparência infantil ali. As crianças dormiam um sono pesado. Carregados de obrigações em agradar o pai. Em sempre conseguirem as melhores notas na escola, ao que ele nem sequer lhes dava os parabéns, apenas ratificando que aquele era o dever de um “bom filho”.
Foi até a sala de sua casa. Viu o Livro Sagrado sobre a estante. Abriu-o aleatoriamente no Evangelho Segundo São Lucas, capítulo 10, versículo 27: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”.
Pela primeira vez, talvez proporcionado pela estranha visão em seu sonho, percebera que fazia uma imagem diferente de Quem realmente era o Supremo Ser. Ele não se comportava como quem “ama o próximo como a si mesmo”. De repente pensou: “Amo a mim mesmo?” E, se meu próximo é minha família, meus colegas de trabalho, meus irmãos, como vêem esse amor que digo ter?
Pela primeira vez, talvez proporcionado pela estranha visão em seu sonho, percebera que fazia uma imagem diferente de Quem realmente era o Supremo Ser. Ele não se comportava como quem “ama o próximo como a si mesmo”. De repente pensou: “Amo a mim mesmo?” E, se meu próximo é minha família, meus colegas de trabalho, meus irmãos, como vêem esse amor que digo ter?
Precisava mudar o seu comportamento e "Amar!".
Imagem: O julgamento de John Huss - um dos precursores do protestantismo na Boêmia - no ano de 1411, quando foi excomungado por líderes católicos e aderiu à Reforma. Leia mais em: John Huss.
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