quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Protestantischen!


  
  A manhã chuvosa contrastava com a noite de brilhante luar que se permitira admirar. Ao sair para o trabalho, segundo o seu costume, fez a sua oração, leu um trecho do Livro Sagrado e, sem despedir-se da esposa e dos filhos, saiu de casa. Nem observou a chuva que caía incessantemente, tal como também não perdia seu tempo observando os luares da noite.

   Ao chegar à rua, cumprimentava apenas aqueles a que julgava fazer por bem. “Diz-me com quem tu andas que te direi quem és!” Sempre lhe vinha à mente a passagem bíblica. E ele esquivava-se de todo e qualquer contato com pessoas que não tivesse a mesma “liberdade” que havia conquistado.
   No trabalho, pelo importante cargo que ocupava na repartição, todos o tratavam com respeitoso distanciamento, convictos de sua seriedade e taciturnidade. Dirigiam-lhe apenas a indispensável palavra, e o tinham em muito alta conta como profissional que era. Chegava todos os dias e voltava para sua casa sempre com apenas duas saudações: bom dia e boa tarde.
   Aos domingos, seu dia de descanso, fazia-se acercar da família logo cedo, ao prepararem-se para ir ao culto matinal dominical. Os filhos tremiam em pensar que o pai, muito honrado, não aprovaria a roupa ou mesmo a forma como se portavam nesse dia. Para ele, o mais importante de todos.
   Ao chegarem à congregação, cada qual tomava o seu assento depois de se ajoelharem e proferir algumas palavras que lhes sabia mecanicamente. Durante toda a reunião, não havia qual se encorajasse a dirigir uma palavra sequer, que estivesse fora do contexto da lição que era estudada.
   Retornando para casa, cumprimentava mui amavelmente os “irmãos” que faziam o mesmo percurso e incitava os filhos à esta mesma atitude.
   Durante o almoço, que não iniciava sem a presença deste, todos, de mãos dadas, elevavam uma prece à  Providência pelo alimento que lhes era disposto sobre a mesa. Em realidade, eram estas as únicas palavras que eram ditas em tais ajuntamentos familiares.
   No decorrer da tarde, ao se retirar para seu aposento. Onde cumpriria a cesta, podia-se ouvir a mãe em recomendação aos filhos para que guardassem silêncio em função de seu pai estar descansando.
   Era mui prestimoso em tudo o que fazia, pensando fazer para agradar ao Soberano Ser.
   Mas, em determinada noite, teve um sonho. Sonhou que estava em sua casa, mas não se via como a si. Tinha uma outra aparência. Era amável, os filhos realmente o amavam, não tinham por ele temor. O respeitavam em obediência e afeto.
   Observou que aqueles pequeninos seres, precisavam de mais que palavras de repreensões que por ele eram jogadas de encontro à paredes da pequena casa por qualquer motivo.
   Viu que sua esposa tinha uma aparência cansada, triste e abatida. Pensou que seu casamento era tal qual um conto mal contado. Onde todos os que estavam à margem do mesmo, o percebiam com muito apreço, mas, que os nele embutidos sentiam-se mal. Era um mandamento atrás do outro.
   Sua casa era a imagem de uma solidão entre a multidão.
   Conduzido ao seu trabalho. Observou que ninguém lhe tinha o respeito apresentado. Era tido como carrasco e que não havia um só que partilhasse a forma como demonstrava viver a sua fé. Não obstante, notou que era motivo de comentários fortuitos, que desmereciam Aquele a quem ele sempre pensou viver.
Na comunidade era tido como um carrasco sobremaneira dispensável.
   Acordou no meio da noite e olhou a esposa que ressonava profundamente ao seu lado. Eram vinte anos de convivência e ele nunca lhe perguntava como havia sido o seu dia. Como passara as horas em que estivera longe do lar. Quais os problemas, corriqueiros que fossem, enfrentados por ela no dia-a-dia.   Lembrou que nunca indagava aos seus subordinados as suas idéias de como melhorar o ambiente de trabalho e que somente lhe impunha regras e mais regras, sem a preocupação de estar fazendo o bem para eles e, por conseguinte para a própria repartição.
   Levantou-se e foi até o quarto dos filhos. Não havia aparência infantil ali. As crianças dormiam um sono pesado. Carregados de obrigações em agradar o pai. Em sempre conseguirem as melhores notas na escola, ao que ele nem sequer lhes dava os parabéns, apenas ratificando que aquele era o dever de um “bom filho”.
Foi até a sala de sua casa. Viu o Livro Sagrado sobre a estante. Abriu-o aleatoriamente no Evangelho Segundo São Lucas, capítulo 10, versículo 27: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”.
   Pela primeira vez, talvez proporcionado pela estranha visão em seu sonho, percebera que fazia uma imagem diferente de Quem realmente era o Supremo Ser. Ele não se comportava como quem “ama o próximo como a si mesmo”. De repente pensou: “Amo a mim mesmo?” E, se meu próximo é minha família, meus colegas de trabalho, meus irmãos, como vêem esse amor que digo ter?

   Precisava mudar o seu comportamento e "Amar!".

 
Imagem: O julgamento de John Huss - um dos precursores do protestantismo na Boêmia - no ano de 1411, quando foi excomungado por líderes católicos e aderiu à Reforma. Leia mais em: John Huss.

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